Como o LAMCA nasceu

O “nascimento” ou o início de uma atividade cotidiana qualquer nunca é iniciado naquele ponto em que se “realiza” um marco físico dela, há 25 anos no caso desta estória. A “vida” em qualquer espécie se inicia num ponto do ciclo biológico que prepara o indivíduo para perpetuar a espécie, uma “pré-gestação”, assim foi também com o Laboratório de Micotoxinas. Toda a “gestação” é afetada por duas importantes variáveis: o instinto de preservação e alguma forma de “amor” e neste ponto os envolvidos se misturam. Foram necessárias várias etapas no ciclo e muitas pequenas transformações nas vias dos atores até que eles se encontrassem no espaço destinado ao ensino, pesquisa e extensão, na Escola de Química e Alimentos da FURG.

Falando em tempo, começo destacando as experiências da primeira célula do sistema vivo LAMCA. Ela (eu) tive oportunidade de aprender como funcionam os seres vivos, como são afetados pelo ambiente, por nossas interferências e ainda como podem se defender, mas para qualquer ação destas precisam trocar matéria com o meio. Conheci muitos gêneros e espécies, mas me apaixonei pelos fungos. Fiquei estarrecida (L.A.Sousa-Soares) como eles, indivíduos heterotróficos eram ubíquos, que aparentemente são situações antagônicas.

A possibilidade de sobreviver em pHs, temperaturas e atividade de água extremos não é para qualquer um que dependa de troca de matéria com o meio para sobreviver. No entanto, os fungos possuem estratégias bioquimicamente muito elegantes, que podem ser vistas quando se olha para o teto da sala de aula, pão amanhecido, árvores do caminho do restaurante universitário e por aí. Na sequência do período de formação acadêmica fui apresentada a outros materiais biológicos e nesta apresentação passei a conviver com fungos que estavam nas amostras que manuseava, e que escolheram minhas unhas para se perpetuarem. Tive certeza do poder destes indivíduos quando precisei arrancar 2 unhas, mas “o amor é lindo”.

O que preservar quando se “pensa” numa atividade profissional? Respondi que a capacitação de pessoas é o melhor caminho, uma percepção, talvez intuitiva mais do que racional, quando se está entre um grupo de indivíduos num ambiente muito pouco amigável (década de 70). Como quando se quer conquistar alguém é preciso uma “produção”, comecei o processo verificando o potencial que encontraria no ambiente em que estava inserida, pois até para amar a gente precisa ser prático e ter bom senso (a esta altura já tinha entendido isto). Meu ambiente sempre foram instituições acadêmicas, iniciei profissionalmente num departamento de Química aonde se formam profissionais, que fazem uso dos fundamentos desta ciência: químicos, engenheiros químicos, engenheiros de alimentos e mais recentemente os engenheiros bioquímicos.

O meu “amor” pelos fungos acabou se consolidando quando ensinava que eles produziam enzimas que contribuíam para os avanços da tecnologia, nas mais diversas áreas, antibióticos, pigmentos e ainda micotoxinas, se provocados. Para manter a relação e aprofundá-la, usei meu ponto mais bonito, “gostar” de fazer determinações químicas e bioquímicas, e que estavam mais ao meu alcance também. Portanto o melhor a fazer seria montar uma linha de pesquisa aonde tivesse possibilidade de usar conhecimentos de química e bioquímica e aplicar aos compostos químicos produzidos pelos fungos, ainda pouco explorados como forma de capacitar profissionais.

Durante o doutorado aprendi sobre as variáveis bióticas e abióticas que afetam a produção de micotoxinas por espécies fúngicas toxigênicas usando o trigo como substrato. No retorno a FURG (1991) comecei a gestação efetiva do Laboratório de Micotoxinas, concorrendo a diferentes editais de fomento, sempre adequando o tema micotoxinas a demanda fomentada, pois elas não eram a tendência na década de 1990. Também, como agora o rendimento em muitos casos era menor do que 10%, mas em 1993 houve um evento em Porto Alegre, “Encontro de Analistas de Alimentos”. Minha colega, amiga e incentivadora professora Leonor Almeida de Souza Soares insistiu que eu deveria escrever um resumo para ganhar o prêmio de melhor trabalho do evento, cujo tema era Desafios na Cadeia Produtiva do Trigo. Era uma estratégia para conseguir um “dinheirinho” para auxiliar a fundação Souza-Soares & Badiale-Furlong para iniciar a pesquisa no tema. Ela sempre torceu e ajudou efetivamente para que eu fosse feliz no “amor”.

O que fazer com os dados que possuía para escrever o tal resumo, identifiquei conversando com um ex monitor da disciplina Bioquímica Estrutural e Metabólica, do curso de Oceanografia, atualmente professor Leo Lynce Valle de Lacerda, que na ocasião do evento fazia mestrado na Oceanografia Biológica e continuava muito bom em estatística. O resumo foi selecionado entre os 10 finalistas que iriam para votação de escolha do melhor trabalho pelos  participantes do encontro. Acredito que com o apoio e propaganda de alguns colegas da FURG e da UFPel ganhei o prêmio oferecido pelo International Life Sciences Institute (ILSI), um cheque (absolutamente arcaico) que usei para abrir uma conta e colocar ali tudo o que fosse destinado ao laboratório que ia nascer.

A conta já estava quase zerada em dezembro do mesmo ano, porque adquiri o enxoval da criança: padrões de aflatoxinas, sílica, solventes e uma lâmpada UV. Um senhor da marcenaria da FURG, acho que era Sr. Orestes, construiu uma caixa preta nas dimensões que pedi e estava pronto um bom ambiente para avaliar o lindo “sinal” fluorescente das aflatoxinas. Esta infraestrutura ficava numa mesa na minha sala de permanência, no pavilhão 2 do antigo campus cidade. O primeiro estudo foi feito em pães de forma com a parceria de minhas colegas (amigas) Leonor e Myriam Salas, usando um fomento para material de consumo que conseguimos num edital da FAPERGS. Estudamos a ocorrência das micotoxinas e tentamos relacionar com as características químicas e tecnológicas dos pães. Só foi possível fazer o relatório e enviar os resultados para um evento, pois eles não eram suficientes para escrever um artigo, não tínhamos nem recurso e nem pessoal disponível. Valeu para experiência de fazer em pouco tempo, obter informações com recurso escasso e ainda trabalhar com iniciantes científicos. Saliento que eles não faziam determinações de micotoxinas, isto fazia a coordenadora do projeto, pela questão da segurança.  

A infância do Laboratório de Micotoxinas

O laboratório “mesa” (itinerante?) ganhou a primeira mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Agroindustrial da UFPEL, em 1995 e foi transferido para uma sala de permanência no pavilhão 06 do campus cidade. Em 1996 o LAMCA passou a dispor de mais algumas salas no mesmo pavilhão, criando a possibilidade de ter mais duas mestrandas, uma do Programa da UFPEL e outra do nosso recém-criado mestrado em Engenharia de Alimentos. Para manter as atividades das dissertações, trabalhos de conclusão de curso e iniciação científica foram feitas parcerias com outros colegas da instituição, aproveitando a nossa força em determinações químicas e bioquímicas em matérias diversas. Uma parceira forte da professora Ana Luiza Muccillo Baisch, a companheira.

Um projeto denominado "Situação Micotoxicologica de Cereais no Rio Grande do Sul" foi aprovado pelo CNPq e desta vez o recurso permitiu começar a tão esperada rotina para estudar os tricotecenos, uma família de micotoxinas muito presente na nossa região e desafiadora, por requerer infraestrutura mais sofisticada para sua determinação confiável. Foi adquirido um cromatógrafo a gás, modelo Varian 2400, na ocasião um equipamento de ponta e ainda instalada uma linha de gáses quase perfeita, que foi compartilhada com outro cromatógrafo do mesmo modelo (adquirido pela ação dos professores do programa de pós-graduação em Engenharia de Alimentos), puro luxo. Instalação e estabelecimento de rotina nova foram realizada em paralelo com o que já fazíamos bem. Foi desenvolvida uma rotina para determinação de DON e toxina T2 em camada delgada para estudar a extração e limpeza de extratos, realizada por uma mestranda experiente em química analítica, proveniente da Albânia (acho que poderia dizer que foi nossa primeira experiência de internacionalização). Esta rotina foi utilizada para obter os extratos a serem analisados no cromatógrafo que estava sendo importado.

O pavilhão 06 tinha sérios problemas e mais o clima colaborando, então o teto avisou: “vamos cair nas suas cabeças”. De novo com ajuda de colegas e discentes que desenvolviam atividades no local conseguimos a reforma do pavilhão que precisou ser esvaziado. Lá se foi o LAMCA com sua estrutura já não tão adequada a itinerância para 2 locais diferentes do campus cidade. Esta divisão promoveu uma redução no avanço do tema micotoxinas, mas por outro lado, propiciou o desenvolvimento de outras atividades dentro da ciência de alimentos. Reformado o pavilhão 06, foi realizado “o retorno” por um grupo de alunos do programa de pós-graduação e iniciantes científicos, sob a supervisão da mestranda Jaqueline Garda (na ocasião), que tinha muitos seguidores nas redes sociais da época.

No final de semana ela e eu reinstalamos o cromatógrafo para que ela estudasse a ocorrência de DON em cervejas. Foi um sucesso tão grande que quase fomos entrevistadas pelo Fantástico. Pensando que o LAMCA já era adolescente, resolvemos credenciá-lo para prestação de serviços a fim de interagir com a comunidade e melhorar nossa infraestrutura para pesquisa. A Jaqueline foi para o Japão fazer treinamento, passando por Nova York, logo após o ataque terrorista as torres gêmeas, meu “coração ficou na boca até a volta” dela. Neste ponto tomei conhecimento detalhado das condições para credenciamento de laboratórios para análise de micotoxinas: as determinações teriam que deixar de ser realizadas com a participação de discentes, mesmo pós-graduandos. Sendo assim, não nos servia, por isto a desistência.

Seguimos com as parcerias, com discentes da graduação e pós-graduação sempre muito presentes em diferentes rotinas da ciência de alimentos. Fazíamos muitas determinações de composição e de ácidos graxos para diferentes programas de pós-graduação da FURG, e fora dela, tendo como contrapartida material de consumo. Não poderia nomear as contribuições específicas de todos sem prolongar muito esta história e cometer injustiças além da conta. Não me esqueci de nenhum dos que passaram e com alguns, que andam pelo mundo exercendo suas profissões em diferentes setores, a parceria ainda é forte. Meus passarinhos todos criaram asas e levaram a sério quando disse a eles “o mundo todo é seu”. Fiquei aqui a torcer para que se realizem e contribuam para um mundo com garantias de segurança alimentar. Eles todos são meus motivos de orgulho e motivação.

A idade adulta do Laboratório de Micotoxinas

O marco de “vida adulta” do Laboratório de Micotoxinas está associado a primeira defesa de doutorado e ao aumento do número de discentes dos nossos projetos, além de outros que realizavam atividades experimentais nas instalações dele. Ainda bem que tínhamos Jesus (Maria de Jesus Pinto Lamego) conosco. Logo em 2008 uma nova colega entrou para o grupo como docente. Agora éramos 3 docentes no Laboratório de Micotoxinas que passamos a chamar Laboratório de Micotoxinas e Ciência de Alimentos (LAMCA) com Jesus na parada.

Um projeto desenvolvido junto com o Instituto Riograndense do Arroz e o Laboratório de Contaminantes Orgânicos e Metálicos (LACOM), novinho em folha como o seu coordenador prof. Ednei Gilberto Primel, consolidou nossas rotinas analíticas entre 2006 e 2014. Fazíamos determinações em arroz cultivado com e sem aplicação de fungicidas para verificar o efeito dessas variáveis na composição química, atividade enzimática, compostos fenólicos, micotoxinas e pesticidas fornecendo subsídios para manejo desta cultura. Continuando a tradição, foram desenvolvidas dissertações, teses e trabalhos de conclusão de curso usando o tema arroz. Com os projetos aprovados em órgãos de fomento foram adquiridos componentes que em 2010 compuseram o primeiro cromatógrafo líquido com detector de fluorescência e UV-Vis, de novo um marco de modernidade para nós. Com esta nova possibilidade incorporamos na rotina do LAMCA determinação de compostos fenólicos, carotenos (por parceria com a professora iluminada Janaína de Medeiros Burkert) e outras micotoxinas (aflatoxinas, ocratoxina A, citrinina e fumonisina).

Com o professor Jorge Alberto Vieira Costa coordenando e outros docentes do Programa de Pós-graduação em Engenharia e Ciência de Alimentos, foi aprovado um projeto envolvendo o estudo de diferentes aspectos de microalgas Spirulina sp e Chlorela, cada um contribuindo com sua expertise. No nosso caso, com a experiência em compostos fenólicos e seus efeitos propusemos avaliar o perfil fenólico, atividade antimicotoxigênica e antioxidante das microalgas. Foram gerados conhecimentos para o tema que vieram de teses, dissertações, trabalhos de conclusão de curso e atuação de iniciantes científicos.

A professora Leonor implantou o uso de processos fermentativos para disponibilizar nutrientes e compostos funcionais em farelo de arroz, em 2009, e por este caminho associamos o estudo de atividade antifúngica de compostos da biomassa fúngica. Temos uma boa expertise neste tema que atuamos até hoje e geramos ainda muito conhecimento. A professora Jaqueline focou seus projetos em aplicação de enzimas oxidativas e hidrolíticas provenientes de diferentes fontes para mitigar a contaminação por micotoxinas e este tema já tem destacado a expertise dela na área de ciências agrárias.

Em 2014, mudamos para o Campus Carreiros, coincidindo com a aquisição de mais um cromatógrafo líquido e um cromatógrafo a gás acoplado a detector de massas, que está sendo utilizado para determinação de tricotecenos e pesticidas. A infraestrutura física mudou, mas Jesus que nos acompanhava há dezessete anos se aposentou. A professora Maria Isabel Queiroz também se aposentou, nos deixando o legado de um HPLC e um CG melhor configurados e isto ampliou nossas possibilidades enormemente. Ficamos meio a deriva na organização de tantas novidades, mas todos fizeram o seu melhor para esperar setembro de 2015, quando veio nossa salvação sob a forma de anjo, a Maristela Cerqueira, que tornou o ambiente amigável, seguro e eficiente. Visto por aí sempre fomos muito sortudos e nunca desamparados por boas energias.

Os dados que se encontram em outras abas do nosso site podem falar sobre a evolução que as instalações estruturais do LAMCA promoveram em termos de teses, dissertações e trabalhos de conclusão de curso. No entanto, a infraestrutura de nada adiantaria para nossos indicadores quali e quantitativos se não tivéssemos comprometimento de todos os atores que por aqui passaram e ainda estão conosco. Assim a evolução do marco físico vai além das questões acadêmicas, pois foi caracterizada por algumas palavras chave: confiança, parceria, apoio, comprometimento, amizade, ética, proatividade, capacitação de pessoas, todas palavras abstratas, mas indispensáveis para formar profissionais competentes.

O correto seria listar todos os que contribuíram para estes aspectos quali e quantitativos da consolidação das linhas de pesquisa descritas no diretório de pesquisa registrado em 2014: “Estratégias para Manejo do Risco de Micotoxinas na Cadeia Produtiva de Alimentos”. Seguindo o lema “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, saliento que cada queda, cada projeto não aprovado, cada artigo rejeitado, bem como os aprovados, nos levou para frente com a certeza que tudo que tivemos merecemos e não fomos vítimas de nada. Sempre se engajaram neste lema pessoas que são “gente fina, elegante e sincera, com facilidade de dizer mais sim do que não” e que fizeram que pudesse ser vislumbrado “um novo começo de era”. Obrigados de todos do LAMCA e meu que contei estes 25 anos...

Eliana Badiale Furlong